Uná Brisa
multiartista, formada em Artes na UFF.
trabalho como modelo e atriz profissional, desde 2019.
Minha pesquisa artística é partir de diversos meios, do sonho ao vídeo, mesclando várias linguagens, das artes manuais às tecnológicas, do conceito ao corpo experimental performático.
Busco uma visão e expressão contracolonial da arte.
Refletindo acerca do ser-fazer contracolonial e da arte como ação desterritorializante, questionando os paradigmas dominantes dos modos de viver na contemporaneidade.
Valorizando o imaterial sob o material.
Buscando o ritual como prática artística de cura e transcendência

Conceito
Fera Sagrada
Autobiográfico. Me inspiro e busco transmutar minhas feridas.
a partir da criação de uma máscara que contenha o espírito do feminino selvagem.
Durante uma prática de ritual em fluxo registrado em uma foto-perfomance para confrontar meus traumas, tenciono acessar a fonte selvagem, erótica e animalesca tão enterrada e perseguida do feminino.
Assim, aspiro transformar a dor em arte, transmutando e renascendo uma nova mulher, combativa aos meus traumas e as amarras patriarcais coloniais.

processo criativo
Comecei a criar máscaras em 2018 em uma viagem para Recife. Lá, aprendi as técnicas básicas e a partir de então continuei as desenvolvendo.
Para este projeto, utilizo a técnica de máscaras teatrais. Faço uso da argila para criar o molde, do gesso para criar a matriz, do papel machê para criar o corpo e a pelagem para o acabamento. finalizando com a pintura.
Visão
Minha jornada nas artes é impulsionada por sonhos lúcidos e pela vontade de compartilhar minhas visões com o mundo. Esta busca ecoa as tradições de povos originários, onde os xamãs interpretam sonhos como canais para comunicação espiritual.
A obra A Queda do Céu: Palavras de um Xamã Yanomami, de David Kopenawa e Bruce Albert, ilustra como os sonhos conectam os xamãs com espíritos e conhecimentos profundos. Kopenawa descreve os sonhos como um meio de "ver as coisas escondidas e ouvir a voz dos xapiri" (Kopenawa, 2010, p. 123), revelando o papel crucial dos xapiri na orientação da comunidade Yanomami.
Viveiros de Castro, em A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios, explora como os sonhos e visões são fundamentais para a prática xamânica e a compreensão do mundo pelos povos amazônicos.
Ele destaca que "os sonhos são vistos como momentos de revelação, em que os xamãs se conectam com os espíritos da floresta, que lhes ensinam como preparar e utilizar as plantas para curar ou para realizar rituais" (Viveiros de Castro, 2002, p. 117), sublinhando a importância da comunicação onírica na transmissão de conhecimento espiritual.
Minha própria jornada artística foi marcada por um sonho revelador com Coatlicue, a deusa asteca, cuja escultura foi enterrada e redescoberta ao longo dos séculos.
A imagem de Coatlicue, escondida por 490 anos e presente nas artes mexicanas, simboliza a resistência do aspecto selvagem do feminino diante da colonização. O impacto dessa ocultação, descrito por Maria Teressa Lemos como o "assassinato da memória" (Lemos, 2011, p. 2), evidencia a importância de ressuscitar e dar vida a histórias e saberes negados.
Minha identificação com essa cosmovisão se fortaleceu através do curso de Artes da UFF, que me levou a explorar e reconhecer minha ancestralidade indígena, resgatando histórias familiares e ligando minha prática artística à sabedoria ancestral.


O arquétipo Selvagem
O arquétipo da Mulher Selvagem reflete uma complexa intersecção entre poder, instinto e sabedoria ancestral. Segundo Jung, arquétipos podem alterar nossas intenções conscientes de formas inesperadas (JUNG, 208, p. 98).
Em Mulheres que Correm com Lobos: Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem, Clarissa Pinkola Estés revela a identidade de Coatlicue, a deusa asteca da vida-morte-vida, que simboliza o ciclo natural e os mistérios da existência feminina. Coatlicue, com sua imagem de caveiras na saia e seu papel como protetora das mulheres solitárias, ensina sobre a auto-suficiência e a dualidade da criação e destruição (ESTÉS, 2014, p. 146-147).
Silvia Federici, em Calibã e a Bruxa, detalha como a demonização da mulher selvagem foi uma estratégia crucial para a acumulação primitiva de capital e controle social, destacando o ataque à autonomia feminina como um aspecto central da dominação capitalista (FEDERICI, 2004, p. 180).
Por fim, a análise micropolítica de Guattari e Rolnik sobre a construção de territórios existenciais através do desejo reforça a importância da resistência e da reconfiguração da subjetividade feminina frente às estruturas coloniais (GUATTARI & ROLNIK, 1986, p. 32).
o erotismo
A perspectiva contracolonial do erotismo, conforme explorada por Geni Nuñez (2023), Audre Lorde (1978) e Suely Rolnik (1986), oferece uma visão arrojada e transformadora que rompe com as narrativas coloniais e patriarcais dominantes. Esse olhar desvia-se dos paradigmas tradicionais para resgatar e celebrar expressões de desejo e sexualidade historicamente marginalizadas e reprimidas, como o nudismo dos povos originários.
Geni Nuñez, em "Descolonizando Afetos" (2022), vê o erotismo como uma força vital e ancestral, conectada à terra e às tradições indígenas. Para ela, o nu é um ato de resistência que questiona os padrões coloniais e proporciona uma nova perspectiva sobre o corpo e o desejo. Nuñez afirma: “O nu é uma forma de expressão e resistência, que questiona os limites impostos pelos padrões coloniais e oferece uma visão alternativa do corpo e do desejo.” (pg. 77).
Por sua vez, Silvia Federici, em "O Calibã e a Bruxa", revela como a repressão sexual serviu para consolidar o capitalismo e o patriarcado, afirmando: “A caça às bruxas e a repressão sexual não foram apenas episódios isolados, mas partes integrantes do processo de construção do capitalismo, visando controlar o corpo e o desejo das mulheres.” (pg. 12) e “O controle do corpo feminino e a repressão das práticas eróticas foram ferramentas cruciais para consolidar o regime patriarcal e colonial.” (pg. 76).
Esses argumentos ressaltam a potência do corpo e a necessidade de sua reapropriação como um ato de libertação e resistência contracolonial.


Audre Lorde, em seu ensaio "Uses of the Erotic: The Erotic as Power", argumenta que o erotismo é uma fonte de poder feminino suprimido por estruturas opressivas. Para Lorde, o erotismo não é apenas uma força vital, mas também uma base para a resistência e transformação social, desafiando as construções eurocêntricas da sexualidade e promovendo uma reconexão com a alegria e o poder inerentes ao corpo.
Suely Rolnik, com suas cartografias do desejo, vê o erotismo como uma força criativa que transcende o físico, integrando-o à criação de novas subjetividades e formas sociais. Rolnik propõe que o desejo pode subverter e reconfigurar as paisagens subjetivas, rompendo com as limitações impostas pelo colonialismo e o patriarcado.
Essa visão contracolonial do erotismo se enriquece ainda mais quando dialoga com o arquétipo de Coatlicue, a deusa asteca da terra, da vida e da morte. Coatlicue simboliza a dualidade e a integração de opostos, refletindo a complexidade do erotismo como uma força que pode construir e desestabilizar.
Sua conexão com a ancestralidade e a terra ressoa com as ideias de Nuñez, enquanto sua energia transformadora alinha-se com a visão de Lorde do erotismo como poder e resistência. A capacidade de Coatlicue de gerar novas formas e destruir velhas estruturas ecoa as cartografias do desejo de Rolnik, destacando o erotismo como motor de criação e subversão.
Assim, a perspectiva contracolonial do erotismo, através das contribuições de Nuñez, Lorde e Rolnik, e em diálogo com o arquétipo de Coatlicue, revela-se como uma força profunda e multifacetada. Ela desafia e desmantela as narrativas coloniais e patriarcais, promovendo a reconexão com a ancestralidade, o empoderamento individual e coletivo, e a criação de novas formas de subjetividade e comunidade.

a Máscara
A máscara, com sua rica e profunda história, transcende o mero adorno para se tornar um poderoso mediador entre os mundos físico e espiritual, especialmente nas tradições indígenas. Mais do que simples objetos decorativos, as máscaras desempenham papéis centrais em rituais espirituais, onde atuam como pontes entre o terreno e o transcendente.
Entre os povos indígenas brasileiros, as máscaras são empregadas em práticas ritualísticas para invocar espíritos, promover a cura e fortalecer a coesão social.
O livro "Rituais de Máscaras na Amazônia: A Expressão Visual dos Povos Indígenas", organizado por Lux Vidal, revela como essas máscaras são imbuídas de significados espirituais profundos e essenciais para os rituais de cura. Vidal observa que "as máscaras são carregadas de significados espirituais e são fundamentais para os rituais de cura, onde o curandeiro ou xamã, ao usar a máscara, incorpora o espírito que traz a cura" (Vidal, 2008, p. 54).
Entre os Tikuna, as máscaras são particularmente significativas durante rituais de passagem e curas espirituais, permitindo que xamãs e curandeiros se transformem em entidades espirituais.
Eduardo Viveiros de Castro, em "A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios", explica que "as máscaras permitem ao xamã assumir a identidade dos espíritos, facilitando a comunicação com o mundo sobrenatural e permitindo-lhe realizar curas e outras práticas espirituais" (Viveiros de Castro, 2002, p. 95).
Ele destaca que essas máscaras são mais do que artefatos; elas são vistas como corpos temporários dos espíritos invocados durante os rituais.
Além de sua função espiritual e curativa, as máscaras indígenas são também uma expressão artística de profunda simbologia. Cada forma, cor e material é escolhido com base em tradições ancestrais, carregando histórias, mitos e saberes transmitidos através das gerações. Assim, as máscaras se tornam não apenas representações visuais, mas instrumentos de transformação e cura, refletindo a continuidade e a vitalidade das tradições culturais.
Essas perspectivas evidenciam o papel crucial das máscaras na vida espiritual e artística dos povos indígenas do Brasil, reafirmando sua importância como símbolos de conexão entre mundos e como veículos de tradição e transformação.


o ritual
Os rituais de cura nas culturas indígenas não são meros atos de remediação; são expressões artísticas profundas, com um poder transformador e contracolonial.
Estes rituais, que entrelaçam práticas curativas com elementos simbólicos e estéticos, desafiam as estruturas coloniais e reafirmam identidades culturais e espirituais.
Victor Turner, em "O Processo Ritual: Estrutura e Antiestrutura", introduce o conceito de "liminaridade" e "communitas", essenciais para entender a dinâmica desses rituais.
A liminaridade representa um estado de transição onde normas sociais são suspensas, permitindo uma reestruturação do pensamento e comportamento, e a emergência de uma comunidade igualitária. Turner observa que "a liminaridade proporciona uma reestruturação do pensamento e do comportamento, permitindo uma renovação social e espiritual" (Turner, 1969, p. 95). Nesse espaço liminar, os rituais de cura permitem a transformação pessoal e coletiva, oferecendo uma arena para a cura das feridas coloniais e a forja de novas identidades.
Esses rituais desempenham um papel contracolonial ao resistir à dominação cultural e reafirmar a identidade indígena. Nos contextos amazônicos, por exemplo, o uso da Ayahuasca em rituais é um ato de resistência cultural e religiosa, conectando os participantes às suas raízes ancestrais e ao ambiente natural.
Eduardo Viveiros de Castro, em "A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios", discute como essas práticas preservam e revitalizam uma cosmologia indígena que desafia a modernidade ocidental, afirmando que "os rituais de cura não apenas restauram a saúde física, mas também revitalizam a cosmologia indígena" (Viveiros de Castro, 2002, p. 104).
Lux Vidal, em "Rituais de Máscaras na Amazônia: A Expressão Visual dos Povos Indígenas", enfatiza que os rituais de cura são simultaneamente atos artísticos e espirituais. As máscaras e outras práticas artísticas reconfiguram a realidade social e servem como meios de transformação e resistência. Vidal destaca que "os rituais de cura com máscaras e outras práticas artísticas são processos de recriação do mundo" (Vidal, 2008, p. 72).
A onça
A onça, com seu status simbólico na fauna brasileira, representa um arquétipo de poder e transformação tanto na cosmologia indígena quanto no inconsciente coletivo. Eduardo Viveiros de Castro explora como a onça é vista como um ser liminar, capaz de transitar entre mundos e dimensões, e seu poder é comparado ao dos xamãs (Viveiros de Castro, 1992, p. 87). Philippe Descola também a descreve como um ancestral totemico e um ser espiritual influente (Descola, 2006, p. 113).
No contexto do feminino selvagem, Clarissa Pinkola Estés em "Mulheres que Correm com os Lobos" relaciona a onça ao arquétipo do feminino indomável, uma força primordial que representa intuição profunda e conexão com o instinto natural.
Assim, a onça, tanto nas culturas indígenas quanto no inconsciente coletivo, simboliza um poder de cura e transformação, especialmente para as mulheres. Ela encarna coragem, proteção e uma reconexão com a natureza selvagem e instintiva, oferecendo um guia poderoso para a autoafirmação e a força interior.


mulher
onça
No ritual de cura com a máscara de onça, visualizamos a integração dessas forças transformadoras.
A máscara, símbolo de poder e ancestralidade, permite à participante se reconectar com a força e resistência das mulheres que a precederam. Este ritual não só resgata e transforma as feridas coloniais, individuais e coletivas, como também reintegra o erotismo como uma fonte de poder e conhecimento.
Ao usar a máscara de onça, uma mulher evoca o espírito selvagem, dançando com seus traumas e expressando feridas invisíveis para transformá-las em potência criativa.
Assim, ao entrelaçar as perspectivas de Geni Nuñez, Audre Lorde e Suely Rolnik com o arquétipo de Coatlicue e o ritual da máscara de onça, surgem novas formas de subjetividade feminina. Esse corpo emergente é marcado pela liberdade, pela conexão com a ancestralidade e pela capacidade de transformar a dor colonial em criação e empoderamento.
O ritual com a máscara de onça simboliza essa integração de forças, criando um espaço onde o feminino selvagem floresce, cura e transforma, revelando um caminho para a emancipação e a reimaginação da identidade feminina.